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Patuscada grotesca: o desfile infantil de Cuiabá

Comissão Arns

30/05/2019 09h15

Paulo Sérgio Pinheiro

Nunca se subestime o mondo cane brasileiro. Quando menos se espera, descemos mais um patamar na indecência. No dia 21 de maio, ocorreu o evento "Adoção na passarela" (sic), promovido pela Associação Mato-grossense  de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara) e, pasmem, pela Comissão de Infância e Juventude da OAB-Seccional MT.  Ali, no Pantanal Shopping, de Cuiabá, desfilaram vinte crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos, órfãs ou abandonadas. As duas entidades alegaram querer "promover a convivência social  e mostrar a diversidade da construção familiar por meio da adoção com participação de famílias adotivas" e que o desfile deu oportunidade às crianças de, "em um mundo que os trata como se invisíveis fossem, poderem integrar uma convivência familiar".

Forma bizarra de tornar visíveis as crianças e de fazê-las integrar a convivência familiar, através da passarela! Hoje, em todo o mundo, está claro que os desfiles de modelos infantis são totalmente danosos para a formação das crianças. Como no Brasil a adoção tardia padece de racismo contra as crianças negras (não vi quantas não eram brancas) e pobres, as crianças e os adolescentes que desfilaram foram bem lavados, penteados, maquiados e vestidos em roupas novas, como manequins palatáveis para a discriminação contra as crianças negras e pobres.

Mas o que mais espanta é a total ignorância pelos promotores do desfile (e pela OAB-Seccional MT) dos direitos humanos das crianças. As crianças não são mini-cidadãos, com mini-direitos. Elas têm todas as garantias que cabem aos adultos. A Convenção dos Direitos das Criança, adotada pela ONU em 1990, no mesmo ano foi ratificada pelo Brasil e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assegura faz quase três décadas a proteção da imagem e exposição de crianças e adolescentes. Em 2006, as recomendações do Relatório Mundial sobre a Violência contra a Criança, da ONU, aprofundou os princípios de proteção à violência contra a criança pela comunidade, como ocorreu  em Cuiabá.

É absolutamente irrelevante que nenhuma criança tenha sido obrigada a participar – era só o que faltava; além de terem agredidas suas imagens, que tivessem sido coagidas a desfilar – ou que "elas expressaram aos organizadores a alegria de participar" dessa patuscada grotesca. As autoridades responsáveis pelo desfile deviam saber que aquelas crianças, sujeitos em desenvolvimento, não têm maturidade para decidir sobre a exploração de imagem, cabendo a todos os adultos envolvidos e ao Ministério Público, a juízes e à Defensoria Pública, impedir tal violência.

Evidente que os adultos que coonestaram esse desrespeito ao direito de imagem das crianças deveriam ser responsabilizados penalmente. Mas, na conjuntura atual, o mínimo (talvez) que possamos conseguir será ficar alertas para impedir que essa passarela ilegal e constrangedora de crianças não se repita.

Paulo Sérgio Pinheiro
Presidente da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.