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Comissão Arns

Stonewall pede passagem na avenida

Comissão Arns

06/06/2019 09h30

Wikimedia Commons

Laura Greenhalgh

A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, cuja 23ª edição acontecerá em 23 deste mês, suscita diferentes olhares. Um deles se rende ao fato de que se trata da maior parada gay do mundo. Consta inclusive do famoso livro dos recordes como a mais ampla manifestação em defesa de direitos humanos de que se tem notícia.

Outro olhar revela que a parada paulistana tornou-se um dínamo econômico-financeiro da metrópole. Pesquisas informam que o turista que participa do megaevento gasta, em média, dez vezes mais do que turistas que visitam a cidade em outros fins de semana, mesmo com feriados ou festas cíclicas. Vem gente de todo o Brasil e muitas partes do mundo: os hotéis lotam. Restaurantes triplicam os serviços. Empresas de entregas trabalham no limite da sua capacidade. Shopping centers recebem com promoções especiais a clientela extra. E a popular Rua 25 de março simplesmente bomba!

Mas, afinal, qual é o tamanho da parada? Segundo organizadores, a última vez em que a Polícia Militar divulgou dados de público, falou em 3 milhões de pessoas. Isso nos idos de 2011. Desde então, o afluxo só aumenta.

Em 2019, um outro olhar sobre a Parada Gay de SP deve ser levado em conta. Um dos raros eventos oficiais autorizados para acontecer na Avenida Paulista, ao lado da corrida de São Silvestre e do réveillon, ela este ano sai às ruas com o tema ¨Nossas conquistas, nosso orgulho de ser LGBT+¨, embalada por um feito histórico: a batalha de Stonewall, travada há 50 anos na cidade de Nova York e relembrada mundo afora. Portanto, trata-se de uma parada gay com um estandarte poderoso para o movimento.

Rememorando os fatos: há meio século, policiais nova-iorquinos costumavam aparecer de surpresa no Stonewall Inn, um pequeno bar frequentado por lésbicas, gays e transexuais. Em suas batidas, eles diziam que o lugar não tinha licença para vender bebidas. Sabia-se que o dono do estabelecimento tinha ligações com mafiosos, assim como outros tantos donos de bar em Nova York. Numa bela noite, porém, ficou claro o foco das investidas: os policiais entraram no Stonewall descendo o cassetete na clientela e só sossegaram ao jogar no camburão um grupo de travestis.

Este episódio foi o estopim para que os frequentadores da casa, contando com o apoio da vizinhança, se organizassem para não mais serem surpreendidos. Quando os policiais voltaram ao local para levar travestis, foram recebidos por um grupo que contra-atacava com garrafas, pedras, paus, até moedas….foram dois dias de batalha campal. Em determinado momento, os próprios policiais buscaram proteção dentro do bar.

Stonewall, confronto de forças com um lado nitidamente vitorioso, marcou duas mudanças de atitude na comunidade LGBT norte-americana: 1. ser gay não deveria mais ser motivo para medo ou vergonha, mas motivo de orgulho e razão suficiente para lutar por direitos. 2. há momentos nessa luta em que o enfrentamento se faz necessário.

A Parada Gay de SP está longe de ser beligerante. Ao contrário, é pacifista por definição e democrática por opção, ao acolher a presença de outros grupos – negros, índios, mulheres, estudantes, ambientalistas… Sua importância não começa e nem termina na avenida, mas se irradia por todo o Brasil. Aliás, já foram cadastradas mais de 200 paradas gays em cidades pequenas, médias e grandes.

Além do cinquentenário de Stonewall, a comunidade LGBT brasileira também festeja a possibilidade do Supremo Tribunal Federal criminalizar a homofobia, equiparando-a ao racismo. Como já se tem a maioria de ministros votando nessa direção, causa ganha.

Porém, o clima parece tenso: crescem no país as agressões contra gays, lésbicas e trans, assim como cresce o discurso de ódio contra estes grupos. Autoridades propagam visões intolerantes, quando deveriam estimular o respeito ao outro. Acrescente-se a isso o incompreensível desmonte do departamento de DSTs-Aids do Ministério da Saúde, afetando programas de prevenção ao HIV. E, por fim, mudanças na Lei Rouanet podem dificultar a realização de projetos culturais voltados para essa comunidade.

Stonewall pede passagem na Avenida Paulista, nesta que talvez seja a mais política das paradas gays da metrópole. O evento não tem financiamento público, porém conta com a prefeitura para garantir a necessária infraestrutura: sinalização de trânsito, policiamento, banheiros, postos de atendimento etc. Agora resta esperar que São Paulo reafirme seu compromisso civilizatório com a diversidade.

Laura Greenhalgh
Integrante da Comissão Arns, jornalista.

 

Foto: Wikimedia Commons

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.