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Clóvis Rossi: se todos os dias morrem entre nós os que nos faziam algum bem

Comissão Arns

25/06/2019 09h00

 

Paulo Sérgio Pinheiro

Foi minha filha Marina que me deu a notícia por WhatsApp. Minha reação primeira foi de perplexidade, incredulidade. Como estava distante do Brasil, sempre haveria aquela possibilidade de que fosse um rumor, mas logo via na internet confirmação pelo coro generalizado de lamentações pela morte de Clóvis Rossi. Diante do seu desaparecimento tão brusco, importa recorrer a W.H. Auden para ajudar a exprimir o choque:

Quando há tantas pessoas a quem devemos lamentar,
quando se tornou assim tão pública a aflição e expôs
à crítica de toda uma época
nossa frágil consciência, nossa angústia,

de quem iremos falar? Se todos os dias morrem
entre nós os que nos faziam algum bem, embora
nunca o bastante, sabiam, mas
contavam, vivendo, aumentá-lo um pouco.

Justamente nesses momentos críticos atuais, quando sua mera presença era a reafirmação de que a lucidez, afinal, iria prevalecer. Ele era sinônimo de integridade, dignidade, elegância de gentleman, essencial nessa hora em que o rebotalho, os rastaqueras dominam as relações pessoais na sociedade brasileira. Ele não se levava muito a sério, il ne se faisait pas des idées, como tantos dos nossos no jornalismo e na academia. Desarmava os pedantes com enorme senso de humor e ironia finíssima.

Tive o privilégio de conviver com ele durante os oito anos que colaborava regularmente na Folha de S. Paulo, e depois, mais amiúde, na revista Isto É e no jornal República, onde ouvir suas intervenções nas reuniões de pauta era sempre para sairmos mais inteligentes e críticos.

Clóvis Rossi inspirava confiança nos interlocutores mais diferentes, no mais largo espectro das forças democráticas, sem precisar se disfarçar ou assumir simpatias. Seus textos baseados em entrevistas eram primorosos em combinar distanciamento com engajamento, proeza dificílima.

Não nos encontrávamos muito, mas quando nos víamos, nos reconhecíamos como velhos amigos. E em relação ao que eu fazia ou me envolvia, dos direitos humanos à guerra na Síria, era de uma generosidade que me encabulava, mas me dava a segurança de que eu estava na linha certa.

Ele não pretendia ser mais que um repórter. Porém, ao fio da sua carreira, era um grande analista do Brasil e da política internacional, era um expert sobre as crises, os conflitos da América Latina ao Oriento Médio, inclusive sobre a Síria, que era um dos nossos pontos de contato nos últimos anos.

No início deste ano, quando discutíamos a criação da que seria a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Comissão Arns, foi decisivo contar com as reflexões dele para que decidíssemos afinal instalar a comissão. Lembro-me dele na última reunião, na casa de José Carlos Dias, todos nós o ouvindo com admiração. Não sabia que seria a última vez que iríamos nos encontrar. Vai nos fazer uma falta danada, irreparável. Como mínima homenagem, devemos mantê-lo vivo como referência de esperança nesses tempos de horror no Brasil e no mundo.

Paulo Sérgio Pinheiro
Presidente da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.