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Prisões: o espaço do não-estado de direito

Comissão Arns

26/07/2019 08h35

Foto: Radioagência Ncional

Paulo Sérgio Pinheiro

Se há uma área em que a construção da democracia no Brasil falhou, nos últimos trinta anos, foram as prisões. Para a maioria dos presos comuns, há pouca diferença em relação ao tratamento que recebiam os presos durante os 21 anos de ditadura. As prisões no Brasil continuam a ser o espaço privilegiado do não-estado de direito.

É claro que, no final da ditadura, nos primeiros governos eleitos diretamente nos estados, a bandeira da humanização das prisões prevaleceu, provavelmente pelas situações que foram reveladas pelos presos políticos. No "Mutirão contra a Violência", redigido por Fernando Gabeira, a convite do presidente José Sarney, inspirado por uma proposta da Comissão Teotônio Vilela ao candidato Tancredo Neves, havia uma nova política carcerária.

Relembro as medidas corajosas – que hoje podemos caracterizar como revolucionárias – propostas por José Carlos Dias, então secretário de Justiça no governo Franco Montoro. Entre essas, o enfretamento da tortura, a criação das comissões de solidariedade eleitas por presos e as visitas íntimas. A TV Cultura organizou um debate sobre essas reformas, entre uma comissão de presos e especialistas em questões carcerárias e jornalistas, impensável nos dias atuais.

Os governos democráticos que se seguiram, no âmbito federal e estadual, não debelaram o superencarceramento, especialmente depois da década de 1990. No poder judiciário, houve um delirante endurecimento das penas, como se esse fosse adequado ao enfrentamento do crime, o que se revelou um logro.

Encaremos a brutal realidade do tempo presente. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registram, agora, 812 mil presos nos regimes fechado, semiaberto e os que cumprem pena em abrigos. Temos a terceira população carcerária no mundo, logo abaixo dos Estados Unidos e da China. Agravando mais a situação, 337.126 são presos provisórios — quer dizer, sem condenação, sequestrados pelo Estado. Tudo marcado pela superpopulação, presos amontoados como gado, em cerca de 423.242 mil vagas.

A maior parte dos presos é composta de jovens de baixa escolaridade, entre 18 e 29 anos, correspondendo a 55% dos reclusos; 64 % são negros (pretos e pardos, segundo o Censo), o que representa quase dois terços dos presos. Entre os presos 34 mil são mulheres, 68% negras. O sociólogo Sergio Adorno, em uma pesquisa inovadora, havia demonstrado, faz mais de vinte anos[1], que nos processos em São Paulo, negros recebem penas mais pesadas que brancos em crimes idênticos. Como afirma a socióloga Dina Alves, "o cárcere é a maior expressão do racismo" no Brasil.

O funcionamento dos estabelecimentos carcerários no Brasil viola flagrantemente os direitos fundamentais dos presos e presas, se constituindo em um "estado de coisas inconstitucional", quer dizer, de total desrespeito à constitucionalidade democrática. Apesar disso, como reconheceu o STF, essa situação continua e se reproduz graças à inércia ou à incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar esse desrespeito ao estado de direito.

 

Paulo Sérgio Pinheiro é presidente da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.

 

[1] Adorno, Sérgio. "Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa", Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.

Foto: Radioagência Nacional

 

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.