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Cientistas brasileiros isolados do mundo?

Comissão Arns

05/02/2020 09h00

 

Maria Victoria de Mesquita Benevides

O Ministério da Educação (MEC) e seu ministro estão, sem a menor dúvida, a merecer as contestações agudamente críticas da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Antes de entrar na questão atualmente discutida, é preciso estabelecer dois pontos para situar a legitimidade, acadêmica e política, das críticas. O primeiro ponto deveria ser óbvio para nossos governantes, mas, infelizmente, não é. Tudo aquilo que se refere ao aprimoramento da cultura (em suas múltiplas dimensões), da educação, da ciência e da tecnologia deve ser tratado com a maior seriedade quanto à qualidade, a necessidade e a oportunidade, por estudiosos e especialistas devidamente qualificados, pelas entidades mais respeitadas da comunidade acadêmica, e não por burocratas.

O segundo ponto é mais delicado e certamente polêmico neste governo. E também deveria ser óbvio: o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de todos os pactos e convenções que se seguiram. Dentre estes, destaca-se, para indivíduos e povos, "o direito de participar do progresso científico" (art.15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966). Cumpre lembrar, igualmente, a adesão do Brasil às Declarações da Unesco, agência das Nações Unidas para a ciência e a educação, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, incluindo o tema do genocídio e dos povos indígenas.

Ora, no último dia de 2019, a portaria 2.227 do MEC nos surpreende ao estabelecer normas absurdas, que restringem o direito de cientistas das universidades federais realizarem viagens nacionais e internacionais, mesmo sem custo para os cofres públicos. Tais viagens, como enfatizam dirigentes da SBPC e da ABC, são absolutamente necessárias para o avanço do conhecimento em várias áreas, assim como para o desenvolvimento de novas tecnologias e para a formação de jovens pesquisadores. A restrição, inexistente em qualquer outro país, é ridiculamente drástica: uma viagem por unidade acadêmica para o exterior e duas para destinos no país.

Não tratamos, aqui, de viagens turísticas ou privilégios "elitistas". São viagens para congressos, simpósios e cursos. Ocasiões especiais para o estabelecimento de parcerias e intercâmbio, trocas de conhecimento, sem o quê não podemos falar em "direitos iguais ao progresso científico", nem em "avaliação por pares externos" de nossos próprios resultados. É bom lembrar que um mesmo tema pode ser pesquisado em subáreas distintas; logo, não faz sentido autorizar a viagem de apenas um pesquisar por unidade. A velocidade do conhecimento, das inovações tecnológicas, das discussões sobre inteligência artificial, sobre as mudanças radicais no mundo do trabalho, no direito internacional, na engenharia genética, na astrofísica, entre tantas, são provas suficientes da urgência de tais trocas internacionais.

O intercâmbio é igualmente crucial, neste tempo ambíguo de globalização e de ressurgimento de nacionalismos sombrios, para as discussões científicas sobre aquecimento global e defesa ecológica, sobre a tragédia dos agrotóxicos, sobre o reconhecimento da diversidade de gênero, sobre o direito dos povos indígenas e tradicionais, sobre o racismo e as novas ondas migratórias, sobre a instabilidade econômica e as crescentes desigualdades, sobre governança global e sobre a volta de governos autoritários no mundo. Outro aspecto importante é reforçar que nossos cientistas no exterior terão sempre melhores meios para defender nossa exuberante diversidade biológica.

Em relação às viagens no solo pátrio, será que precisamos provar por que temos de conhecer este país de dimensão continental? É tudo tão evidente que fica até constrangedor perguntar: como restringir o movimento de nossos pesquisadores? E onde fica o "direito de ir e vir", para acadêmicos liberados por sua unidade?

O ministro da Educação já deu provas concretas de total inadequação para o cargo, para dizer o mínimo. Tem sido alvo de nossa surpresa indignada ao acusar universidades de plantar maconha e do tal "marxismo cultural". É até difícil entender como pode ser professor de uma universidade respeitada como a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A última nomeação na equipe do MEC nos mata de vergonha: um diretor da Capes, órgão da área de pós-graduação, que pretende defender o ensino do criacionismo nas escolas!

Tomo a liberdade de uma nota pessoal: venho da área de humanas e aprendi muito com viagens no Brasil e no exterior. O curso que fiz em Genebra, sob os auspícios da ONU e inteiramente custeado pela entidade anfitriã, me deu conhecimento teórico e de experiências concretas, em vários países, sobre educação em direitos humanos, tema a que me dedico há décadas. Meu marido, Paulo Benevides Soares, professor da Universidade de São Paulo (USP), estabeleceu uma sólida parceria em estudos de astronomia com a França. Vários brasileiros seguiram com pesquisas de ponta nessa área.

Na área de humanas, vale lembrar que duas entidades internacionais, de ciência política e de sociologia, foram presididas por pesquisadoras brasileiras.

Vamos em frente. O ministro demitiu o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de reputação internacional, recentemente premiado. Houve grande reação. Cabe à comunidade acadêmica, aos agentes públicos comprometidos com o desenvolvimento do país, reagir fortemente agora contra portaria tão infeliz. A 72ª Reunião Anual da SBPC será realizada em julho, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Serei otimista: até lá essa portaria já terá caído.

 

Maria Victória Benevides é integrante da Comissão Arns, socióloga, cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP.

 

Foto: Marcha pela Ciência / Divulgação

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.