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Toffoli: liberada a celebração da ditadura pelo governo

Comissão Arns

06/05/2020 15h06

Por Paulo Sérgio Pinheiro

O presidente da República, ao participar de manifestação em favor de uma intervenção militar, no dia 3 de maio, em frente ao Palácio do Planalto, bradava que não ia mais admitir nenhuma interferência no seu governo. Referência clara à liminar emitida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, impedindo a nomeação do antigo segurança da campanha do presidente como diretor da Polícia Federal. Nas faixas dos manifestantes, pedia-se o fechamento do STF. Mas nem as ameaças e ofensas feitas a si mesmo e a seu colega, nem o "bota abaixo o Supremo", moveram o presidente do STF, que se manteve, até a última terça-feira (5), em um silêncio tumular.

Não se perdeu por esperar. No dia 5 de maio, o presidente do STF, Dias Toffoli, derrubou decisão de uma juíza federal e autorizou o Ministério da Defesa a manter no ar, em seu endereço na internet, uma nota em que justifica e celebra o golpe militar de 1964. Para quem não se lembra, essa nota é uma ordem do dia do general ministro da Defesa, que foi, aliás, assessor de segurança pública de Toffoli no Supremo – alguém consegue imaginar Adaucto Lúcio Cardoso, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes Leal com um general como assessor? A nota, lida em todos os quartéis, no 31 de março de 2020, afirmava que o golpe de 1964 foi "um marco para a democracia brasileira".

O ministro, amuado com seus colegas, que depois de uma longa inércia resolveram controlar a constitucionalidade dos atos do Executivo, aproveitou para dar o troco. Não hesitou em se referir à decisão da juíza como "um exemplo clássico de excessiva judicialização", sobrando, assim, para os outros ministros. Deu ainda um lindo tiro no próprio pé, pois viu na decisão da juíza risco de "indevida invasão do judiciário no Executivo", quando é precisamente prerrogativa do Supremo interferir em decisões inconstitucionais dos outros poderes.

Mas o que mais me comoveu foi Toffoli justificar sua decisão alegando que impedir a manutenção da nota de celebração do golpe de 1964 seria "ato de censura" (sic) de ofensa à "livre expressão" (sic) dos comandantes militares. Quer dizer que o presidente do STF não vê nada de mais em que o ministro da Defesa de um governo constitucional enalteça a ruptura política da democracia, perpetrada pelas Forças Armadas.

Toffoli foi de uma coerência admirável, pois, em discurso em um seminário por ocasião dos 30 anos da Constituição de 1988, já havia proferido que o golpe, a ditadura de 21 anos e o regime militar de 1964 foram apenas "um movimento".

Se em 2018 já era inaceitável esse revisionismo do golpe, hoje, diante de manifestações criminosas que pedem a reinstalação da ditadura, é intolerável que, mais uma vez, Toffoli colabore para consolidar a ditadura de 1964 como experiência justificável em nossa história.

Com essa atitude, em pleno ensaio de escalada para a implantação do autoritarismo, ratifica uma vez mais o negacionismo dos crimes da ditadura – tortura, sequestros, execuções, desaparecimentos – que três décadas de democracia não conseguiram desmontar.

 

Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.

 

 

Foto: Comandante do 24º BIS Sousa Filho passando a tropa em revista, em 29 de março de 2019, em cerimônia de comemoração do golpe de 1964.

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.