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Comissão Arns

Marco temporal: uma farsa jurídica

Comissão Arns

23/05/2020 10h31

 

Por Dalmo de Abreu Dallari

A farsa jurídica que vem sendo divulgada com o rótulo de "marco temporal" é clara e ostensivamente inconstitucional, além de contrariar normas claras e objetivas constantes de documentos básicos e proclamações de instituições jurídicas internacionais que tem o Brasil como um de seus membros ativos.

Quanto ao aspecto constitucional, a Constituição brasileira é absolutamente clara quando dispõe, no artigo 231, que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Nem nesse, nem em qualquer outro dispositivo da Constituição existe qualquer ressalva ou restrição dizendo que tais direitos só se  aplicam às terras que já estavam sendo concreta e permanentemente  habitadas e usadas pelos índios na data de início da vigência da Constituição. O que ficou constitucionalmente assegurado foi o direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas, o que compreende  não só os locais de moradia mas também as áreas em que as comunidades indígenas circulam para obtenção dos bens indispensáveis para sua sobrevivência, segundo os usos e costumes de cada comunidade.

Assim, pois, é escancaradamente inconstitucional a pretensão de estabelecimento da data de início da vigência da Constituição como o que tem sido maliciosamente referido como "marco temporal" do início dos direitos indígenas. Os direitos das comunidades indígenas são sobre as terras "que tradicionalmente ocupam", como está expresso na Constituição.

A par disso, é também oportuno assinalar que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, acolhida formalmente em 15 de janeiro de 2016 pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o Brasil é membro ativo, e aprovada pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, dispõe no artigo XVIII que "os povos indígenas têm direito ao reconhecimento de sua propriedade e dos direitos de domínio sobre suas terras, territórios e recursos que ocupem historicamente".

Em conclusão, tendo em conta o que dispõe expressa e claramente a Constituição, fica mais do que evidente que a pretensa teoria do "marco temporal", para limitar os direitos dos índios ao que já estava demarcado quando entrou em vigor a atual Constituição, é uma farsa jurídica, absolutamente inconstitucional.

Dalmo de Abreu Dallari é integrante da Comissão Arns, advogado, ex- secretário dos Negócios Jurídicos do município de São Paulo

 

Foto: Roosewelt Pinheiro / Agência Brasil

 

 

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.