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Honrar a morte de Rieli Franciscato

Comissão Arns

17/09/2020 09h27

 

Rieli Franciscato cuida de ferimento de indígena

Manuela Carneiro da Cunha

A Comissão Arns acaba de receber notícias altamente preocupantes sobre a situação de povos indígenas isolados, que são, como é sabido, os mais vulneráveis dentre os vulneráveis. São eles os que foram e continuam sendo sumariamente extintos sem que sequer a notícia do seu genocídio consiga sair da floresta. Desaparecem.

O caso da Terra Indígena Ituna Itatá no Pará é ainda mais macabro, pois já se antecipa um genocídio que não aconteceu. Interditada em 2011 pela Funai por evidências de existência de povo isolado, e posteriormente delimitada, essa terra tinha, em 2011, apenas 63 hectares desmatados. Situada na área de influência da Hidrelétrica de Belo Monte, a partir de 2017, a TI começou a sofrer invasões, que aumentaram muito em 2018. Em 2019, já foi campeã de desmatamento anual de toda a Amazônia, com 11.990 hectares desmatados!

Mas ainda restou na TI Ituna Itatá floresta suficiente para o povo indígena isolado se refugiar. Ruralistas e políticos começaram a espalhar a notícia de que esse povo não existia e que se deveria liberar a área. O senador Zequinha Marinho (PSC-PA) protocolou, em março de 2020, um projeto de decreto legislativo com esse propósito[1].  É literalmente uma morte anunciada!

As invasões em terras indígenas e unidades de conservação explodiram nos dois últimos anos. Aumentaram o desmatamento nessas áreas em proporção muito maior do que no restante da Amazônia. Há claramente aí uma resposta ao incentivo do governo e ao desmonte das instituições de controle e proteção dos povos indígenas e do meio ambiente. Na Funai, e especialmente no grupo dedicado à proteção dos povos isolados e dos recém-contatados, há cada vez menos recursos humanos e menos apoio da presidência.

Na semana passada, Rieli Franciscato, um indigenista com trinta anos de experiência com povos isolados, foi morto por uma flecha ao tentar averiguar avistamentos. De quem é a culpa? Rieli tinha pedido apoio à Polícia Militar, que apenas cedeu dois policiais para acompanhá-lo. Esse ataque ocorreu quando toda a TI Uru Eu Wau-Wau, dentro da qual se refugiava o povo isolado, estava sendo invadida e desmatada em taxas cada vez mais altas.

Honrar a morte de Rieli é mudar a situação: é desintrusar, por fim, as terras indígenas invadidas.

Como bem nota o grande jornalista Rubens Valente, a posição defendida pelo governo no recente julgamento no Supremo da cautelar da ADPF 709, foi um acinte. O Advogado Geral da União, ao arrepio de toda a experiência passada, argumentou pela dificuldade de tirar invasores de terras indígenas pela possível contrariedade dos governos estaduais.

Repetimos: honrar a morte de Rieli é fazer valer a Constituição e tirar os invasores.

 

Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia.

 

Foto: Portal Tudo Rondônia

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.