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Uma lenda ainda viva: Dom Paulo Evaristo Arns

Comissão Arns

05/10/2020 09h19

Por Belisário dos Santos Jr.

"Churchill, Roosevelt e Stálin. Os três, embora sempre informados, não sabem quantas mães, quantas crianças, foram vítimas dos incessantes, e às vezes desnecessários, bombardeios. Algumas ou muitas cidades, como é evidente, estão em ruínas. Os monumentos, sobretudo as catedrais, que levaram centenas de anos e milhares de vidas para serem construídas, pouco ou nada falam a esses três homens vitoriosos. Todos, ou quase todos, aplaudem. Por que guerra? A fúria de um só bandido armado tira a respiração e o anseio de felicidade a nações inteiras. Agora, a fome é de pão, água e vida. Amor".  (Paulo Evaristo Arns, como historiador, rememorando os momentos em torno da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Essa é a face que mais admiro em Dom Paulo. Sim, assim no presente, porque sua obra, sua fé, sua doutrina, suas palavras ainda ecoam nesta cidade, neste país, tomam novas formas de indignação contra injustiças, inspiram à ação solidária, sem receio de desagradar a qualquer autoridade, grupo ou pessoa.

Homem generoso, renunciou ao palácio para beneficiar as comunidades de base da periferia. Príncipe da Igreja, mas homem de ação, com o risco de sua vida, intermediou a negociação com os sequestradores, em rumoroso caso, onde a polícia civil, a militar e três cônsules não tinham tido sucesso. A vítima e os seus captores sobreviveram.

Advogados paraguaios de direitos humanos contam que, na visita feita a Asunción, ainda sob o governo Strossner, recebido pelo vice-presidente (honraria apenas dada a um cardeal), e perguntado o que fazer para agradá-lo, respondeu com a brava simplicidade com que sempre enfrentava o poder: "Soltem os presos políticos". Muitos foram soltos naquela tarde, contam os ativistas com imenso orgulho desse religioso que era deles um pouco, também.

Talvez muitos não saibam. Dom Paulo presidiu o Comitê Internacional de Especialistas contra a tortura (Cepta). A ideia matriz era criar um sistema de visitas de surpresa a centros de detenção, celas, ou quaisquer lugares que abrigassem prisioneiros. Desses esforços nasceu a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, em 1984, e o mecanismo de visitas, que agora é lei no Brasil – ainda que boicotado pelo governo atual, que suprimiu a remuneração dos peritos. O mecanismo resiste graças a uma liminar dada por juiz estadual, pendendo no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), em face do decreto ilegal.

Criou um serviço de proteção jurídica para refugiados, durante a vigência de ditaduras militares no Cone Sul. Abençoou a criação, em São Paulo, da Associação Paulista de Combate ao Desemprego, política pública não governamental desenhada por várias religiões. Idealizou e protegeu a construção do Brasil Nunca Mais. Foi a coragem e a presença viva por trás da Comissão Justiça e Paz e do Clamor.

Sofreu perseguição e atentado. Salvou vidas, interrompeu tortura, como conta Ricardo Carvalho, em "As muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns". Sempre torceu pelo Corinthians.

Uma lenda. Uma lembrança viva para fortalecer a luta contra o retrocesso em termos de direitos humanos.

 

Belisário dos Santos Jr. é integrante da Comissão Arns, membro da Comissão Internacional de Juristas,  ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.