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Louis Joinet, nosso aliado na resistência à ditadura

Comissão Arns

15/10/2020 09h00

 

Paulo Sergio Pinheiro

No início dos anos 1990, durante uma de minhas estadas regulares em Paris, convidado de Ignacy Sachs no Centro de Pesquisas sobre o Brasil Colonial e Contemporâneo (CRBC), Antoine Blanca, que mais tarde seria subsecretário-geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, me convidou para almoçar. Louis Joinet, conselheiro de vários primeiros-ministros no governo François Mitterand, juiz e antigo fundador do sindicato francês da magistratura, juntou-se a nós.

Foi o meu primeiro encontro com Joinet. Louis me disse, como escreve em suas memórias, Mes raisons d´etat (Paris. La Decouverte, 2013), que tinha ido a São Paulo em julho de 1978 para um encontro sobre a anistia no Brasil e que quase tivera recusada sua entrada no país por causa do visto albanês em seu passaporte. Apesar disso, conseguiu passar pela Polícia Federal, graças à atriz e ativista dos direitos humanos Ruth Escobar. Quando ele chegou, a conferência havia sido proibida pelas autoridades locais, mas acabou sendo realizada no próprio teatro de Ruth, uma extensão de sua casa.

Essa conferência deu origem a longas discussões e, em agosto do mesmo ano, o governo militar concedeu uma anistia que permitiu o retorno dos exilados. Louis voltou ao Brasil cerca de dez anos depois, desta vez para se encontrar com os trabalhadores rurais sem-terra do estado do Pará, com o padre Ricardo Rezende e com Henri Burin des Roziers, frade dominicano e advogado dos camponeses. Ele também foi a São Paulo para uma reunião de trabalho com Hélio Bicudo.

Nosso segundo encontro foi em 1998, quando fui eleito, sucedendo a meu amigo o embaixador José Augusto Lindgren Alves, para a Subcomissão das Nações Unidas para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, que se reunia anualmente no Palais des Nations, em Genebra. O órgão, formado por 26 especialistas independentes, de países dos cinco grupos regionais, era responsável por assessorar a então Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (sucedida em 2006 pelo atual Conselho de Direitos Humanos), que reunia representantes de Estados. Joinet era membro da Subcomissão, desde 1979, e assim permaneceu até 2001.

Durante seus vinte e dois anos na Subcomissão, Louis trabalhou com impunidade para crimes de guerra, detenção arbitrária, desaparecimentos forçados e presos políticos de ditaduras militares de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Realizou diversos estudos que estão na origem dos textos das Nações Unidas contra a impunidade. Em 1998, foi o redator da primeira declaração da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado.

Quem viveu o longo período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, conhece Louis Joinet e reconhece nele um eminente defensor dos refugiados e dos brasileiros perseguidos e exilados na França, onde Joinet foi presidente do Comitê França-Brasil – uma exemplar demonstração de solidariedade aos defensores de direitos humanos brasileiros.

Ele ajudou a criar e coordenar o Tribunal Bertrand Russell, para o julgamento de crimes de ditaduras na América Latina. Defendeu inúmeros brasileiros ameaçados pelo terror ditatorial, incluindo muitos ativistas exilados na França.

Para os brasileiros, Joinet continua sendo uma personalidade inesquecível, que mostrou seu apoio à democracia no Brasil até o fim de sua vida. Em 2019, no ano em que morreu, ele assinou, com outros treze juristas europeus eminentes, um manifesto que clamava pela libertação do presidente Lula e defendia a anulação da sentença que o condenara.

Nos vimos pela última vez em 2016. Louis tinha marcado um encontro em Paris com Emmanuel Decaux, seu sucessor na Subcomissão, e eu, em um de seus restaurantes prediletos, a pizzaria Renato, boulevard du Temple, perto da Place de la République, em seu bairro. Era um lindo dia de primavera. Depois do jantar, Louis recusa que Emmanuel e eu o acompanhemos. Ele vai para casa sozinho, observamos Louis se afastar com um passo lento. Eu não sabia que este seria o último encontro com meu velho amigo, mon vieux copain, o grande Louis Joinet.

 

Paulo Sérgio Pinheiro é relator especial da ONU e presidente da Comissão Independente Internacional de investigação sobre a República Árabe da Síria. É membro fundador e foi o primeiro presidente da Comissão Arns.

 

 

Foto: Frantz Vaillant

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.