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Comissão Arns

Extermínio oficialmente anunciado

Comissão Arns

27/08/2019 08h42

 

Paulo Sérgio Pinheiro

Sobre mortes pela polícia no Brasil, já ouvi de tudo. Mas nada tão sinistro como as declarações do secretário estadual da polícia civil do Rio de Janeiro, delegado Marcus Vinícius de Almeida Braga, neste mês de agosto de 2019. Sua Excelência proferiu que "o número de mortes provocadas por policiais deve aumentar até dezembro". As razões que o secretário invoca para essa escalada criminosa são temerárias: "É um número que a tendência é subir até dezembro porque as ações estão sendo feitas. Sem citar dados, declarou que o número das mortes ainda é "alto" e "não é um número que a gente deseja".

Os números – que a gente não deseja – são 434 execuções de janeiro a março deste ano, em média de sete mortes por dia pela polícia militar. Em 2018, foram 368 , o maior índice nos últimos 21 anos. E essas mortes correspondem a 40% dos homicídios no Rio de Janeiro e na Grande Niterói. Não há cidade, não há país no mundo (exceto talvez as Filipinas) que apresente tais números.

Essa previsão macabra do delegado escancara uma política de governo de execuções extrajudiciais baseada na tolerância e na impunidade das mortes. Não há nenhuma ligação direta entre mortes e eficiência no enfrentamento com a criminalidade. Como lembra o sociólogo Sebastian Roche, "uma boa polícia é antes de mais nada uma polícia que não mata nem fere, não uma polícia que mata e fere legalmente".

Tais números são a estatística de uma política de segurança incompetente e criminosa, que põe em risco as vidas dos policiais e a população que habita nas favelas. E que não debela as organizações criminosas nem garante maior segurança para a população. Esse extermínio atinge principalmente adolescentes e jovens negros, alvos do racismo, do apartheid por parte das classes médias e dominantes brancas em relação à população das favelas – em sua quase totalidade, trabalhadores e respeitadores da lei.

É lamentável e deprimente que 30 anos de governos democráticos nas esferas federal e estaduais não conseguiram estancar essa mortandade porque não puderam ou não quiseram impor controles efetivos sobre a polícia através das instituições do Ministério Público e da Justiça, fortalecidos pela Constituição de 1988. Claro que a polícia vai sempre usar a força, mas o que vai qualificar seu caráter democrático é o controle, para citar Roche mais uma vez: "A distinção entre ditadura e democracia não se deve apenas ao nível de violência da política, mas à realidade do controle de suas ações".

Justamente o que já está consolidado no Rio de Janeiro é a total falta de controle sobre a polícia. A licença para matar proposta pelo pacotão de Sérgio Moro virá legalizar de vez as execuções extrajudiciais pelas polícias militares no Rio e no Brasil, na transição lenta, gradual e segura da democracia para a ditadura.

 

Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.

 

Foto: Betinho Casas Novas / Estadão Conteúdo

 

 

 

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.