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Comissão Arns

Suicídio ecológico e ecocídio indígena e de ribeirinhos

Comissão Arns

18/09/2019 09h30

 

Por Manuela Carneiro da Cunha

Em maio deste ano, um grupo de cientistas independentes foi reunido pelo Ministério Público Federal (MPF), em Brasília, para avaliar a situação da vazão do Rio Xingu, especialmente no trecho chamado de Volta Grande. "É um suicídio ecológico", declarou Jansen Zuanon, um eminente especialista de peixes e líder do grupo. "É também um etnocídio, que tudo indica decorrer da corrupção envolvida em Belo Monte", disse a procuradora Thais Santi, de Altamira.

Mas o que está ocorrendo na região? E o que pode vir pela frente? É preciso esclarecer que as transformações socioambientais decorrentes da implantação do complexo da usina de Belo Monte incidem diretamente sobre as terras indígenas Paquiçamba, do povo Juruna; Terrã Wãgã, do povo Arara; e TI Trincheira Bacajá, do povo Xikrin. A hidrelétrica coloca em risco a sobrevivência física e a reprodução cultural desses povos.

A antropóloga Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pará, explica que, por estarem situadas no trecho a jusante da barragem de Pimental, a assim chamada "Volta Grande do Xingu",  essas terras sofrem as consequências da severa redução da vazão do rio Xingu, cuja situação certamente será agravada a partir de 2020, com a implantação de um plano de vazão chamado de "hidrograma de consenso". Esse hidrograma regularia a  vazão mínima necessária na Volta Grande para assegurar a sustentabilidade ecológica e social desse trecho.

O hidrograma, em suma, contrariamente ao nome, não gera consenso algum. É um hidrograma de dissenso, de conflito. A antropóloga chama atenção para um parecer do Ibama e para o relatório realizado por especialistas independentes. Os Juruna aliás, já fizeram um monitoramento independente. Não resta mais dúvida de que " as vazões propostas no hidrograma vão inviabilizar a vida na Volta Grande do Xingu. Os documentos são contundentes e claras as evidências e indicativos de impactos graves e irreversíveis que já ocorrem e estão em curso, mesmo com vazões bem superiores às do hidrograma proposto".

Os impactos negativos já podem ser observados pela diminuição do pescado, principal fonte de renda e alimentação; pela redução da navegabilidade; pelo aumento da disputa por recursos ambientais entre indígenas e não indígenas. Sônia Magalhães ressalta que, de acordo com o MPF, "os dados demonstram que houve redução drástica no uso de peixe para alimentação do povo Juruna e o aumento do consumo de alimentos provenientes da cidade, o que tem causado problema de saúde na população, que antes não se verificavam, tais como hipertensão, obesidade etc.".

O curso da tragédia se estende ao Rio Bacajá, tributário do rio Xingu na margem direita da Volta Grande. Vem do Bacajá a principal fonte de água e pescado do povo Xikrin. A baixa vazão também pode inviabilizar a navegação local, afetando a circulação tradicional desse povo. Como se não bastasse, os Xikrin ainda aguardam a desintrusão de sua área.

Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia.

 

Foto: Ederson de Oliveira / portal Associação Indígena Porekrô

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.