O Brasil de Thomas Piketty: legado autoritário e desigualdade
Por Paulo Sérgio Pinheiro
O Brasil é hoje o país que mais concentra renda, segundo dados de 2015, figurando no 1% (1,4 milhão de adultos) do topo da pirâmide (28,3% da renda). Somos superados, por muito pouco, apenas pelo Qatar (29%). Os 50% mais pobres (71,2 milhões de cidadãos) ficam com 13% de todos os rendimentos, menos da metade do recebido pelo 1% do topo. Como fomos capazes desse feito?
No novo livro de Thomas Piketty, Capital et Idéologie (Paris, Ed. Seuil, 2019), há reflexões que ajudam a responder essa questão: "A desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política. (…) as elites das diferentes sociedades, em todas as épocas e em todas as latitudes, frequentemente tenderam a "naturalizar" as desigualdades, isto é, tentaram dar-lhes fundamentos naturais e objetivos, para explicar que as disparidades sociais existentes (…) são do interesse dos mais pobres e da sociedade no seu conjunto (… ) e que a estrutura vigente é a única possível" (página 20). Esse foi e continua a ser o credo inabalável de nossas classes dominantes brancas.
O legado dessa "naturalização" da desigualdade no Brasil continua a pesar sobre o presente, em que o passado nem é passado. Piketty adverte, justamente, na parte em que trata da tardia abolição da escravidão no Brasil, ser "impossível compreender a estrutura das desigualdades modernas sem começar a levar em conta a pesada herança de desigualdade – le lourd héritage inégalitaire – resultante da escravidão e do colonialismo" (p.298).
A escravidão termina, mas não cessam as desigualdades extremas dela decorrentes. A Constituição de 1891 proibiu o voto dos analfabetos, que vigorou dos anos 1890 até os anos 1980, excluindo do jogo político os antigos escravos, mas também os mais pobres em geral. Foi preciso vir a Constituição de 1988 para que o voto fosse estendido a todos. Outro legado foram as relações de trabalho extremamente duras no campo, ao longo do século XX. Os proprietários utilizando a polícia e o aparelho de Estado para reprimir as greves e comprimir os salários, explorando sem limites a jornada de trabalho.
Piketty leva em conta as políticas dos governos dos presidentes Lula e Dilma, com o aumento da parte da renda indo aos 50% aos mais pobres, entre 2002 e 2015. Mas, segundo ele, essa melhora se fez às expensas dos grupos sociais entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, sem nenhuma desvantagem para esses, que conseguiram manter sua posição. A razão teria sido aqueles governos jamais terem feito uma reforma fiscal, atacando a regressividade fiscal com pesados impostos e taxas, enquanto as rendas e os patrimônios mais altos pagavam no máximo uma taxa de 4%.
Claro que essa crítica exige entender em que correlações de forças aqueles governos operaram, e obtendo êxito em políticas sociais. Ouso crer que obstáculos para aquelas reformas podem ser explicados por outros aspectos do legado, como o racismo estrutural e a violência ilegal do Estado. Se entendermos por que os governos democráticos não eliminaram esse legado autoritário, talvez expliquemos melhor por que a desigualdade também persiste intocada.
Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.
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