“Plano de paz” bota abaixo o direito internacional
Paulo Sérgio Pinheiro
No final de janeiro, na Casa Branca, em Washington, reuniram-se Donald Trump – presidente dos Estados Unidos sendo julgado em um processo de impeachment, acusado pelos crimes de abuso de poder e obstrução do Congresso – e Bibi Netanyahu – primeiro-ministro de Israel, indiciado pelo procurador-geral por crimes de suborno, fraude e quebra de confiança. O motivo do encontro foi a apresentação um "plano de paz" para o Oriente Médio.
A burla do texto de 80 páginas já começa no mapa que dá cor à Palestina, para dar a impressão de continuidade, quando a realidade é um arquipélago de enclaves. O plano implica a criação de entidade não contígua, com a anexação das 200 colônias ilegais na Palestina, onde vive uma população de 600 mil a 750 mil israelenses. Aniquila-se de uma penada um dos pilares da ordem internacional, edificada depois da Segunda Guerra Mundial, segundo o qual a soberania não pode ser adquirida pela força.
Obriga-se os palestinos a renunciar a seu direito internacional reconhecido, de retornar à sua terra. Seu acesso a Jerusalém será limitado; sua capital, localizada em um subúrbio distante. O "plano" retira dos palestinos todas as vias internacionais de proteção dos seus direitos humanos, incluindo o Tribunal Penal Internacional – cujo exame de crimes de guerra é temido por Israel.
As reações das organizações de direitos humanos e humanitárias, no mundo inteiro, em relação a esse bota abaixo do direito internacional pelo "plano de paz", foram imediatas. O secretário-geral das Nações Unidas reafirmou que a ONU continua comprometida a apoiar palestinos e israelenses a solucionar o conflito, a partir de resoluções das Nações Unidas, do direito internacional e de acordos bilaterais. O propósito é contemplar a perspectiva de dois Estados, Israel e Palestina, vivendo lado a lado, em paz e segurança, dentro de fronteiras reconhecidas, com base nas linhas anteriores a 1967.
Michael Lynk, o relator especial da ONU sobre a situação de direitos humanos no território palestino ocupado, meu eminente colega, foi igualmente incisivo: "Esta não é uma receita para uma paz justa e duradoura, mas propõe a criação de um 'bantustão do século XXI' no Oriente Médio. O statelet – pequeno estado – palestino previsto pelo plano norte-americano consiste em um arquipélago disperso, de território não contíguo, completamente cercado por Israel, sem fronteiras externas, sem controle sobre o próprio espaço aéreo, sem direito a forças armadas para defesa, sem base geográfica para uma viabilidade econômica, sem liberdade de movimento e sem capacidade de reclamar em fóruns judiciais internacionais contra Israel ou os Estados Unidos".
O presidente do International Crisis Group, Robert Malley, lembrou que "este é um plano que dá a Israel tudo o que deseja, concede aos palestinos tudo com que Israel não se importa, tenta comprar os palestinos com a promessa de 50 bilhões de dólares em assistência que nunca se concretizará. E depois o chama paz".
Para a organização pró-Israel J Street, que tem sede nos EUA, "não existe plano de paz; trata-se de uma cortina de fumaça para disfarçar uma anexação". A B´Tselem, respeitada organização de direitos humanos em Israel, afirmou que "há muitas formas de terminar uma ocupação, mas as únicas opções legítimas são aquelas baseadas na igualdade e nos direitos humanos para todos".
Diante desse flagrante desrespeito do direito internacional, surpreende, aqui, o silêncio tanto da comunidade de direitos humanos – cuja fundação é o direito internacional de direitos humanos –, quanto das forças democráticas e progressistas. Que mais será necessário para que nos indignemos, se nem esse "plano de paz" que arruína os direitos humanos na comunidade internacional nos incomoda?
Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e relator de direitos humanos para a ONU.
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