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Onde está o Estado laico? Onde está a Constituição?

Comissão Arns

06/02/2020 09h00

Manuela Carneiro da Cunha

A notícia de que um pastor evangélico estaria sendo nomeado para assumir a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC), da Fundação Nacional do Índio (Funai), gera mais um alarme quanto ao trato do atual governo atual em relação aos povos indígenas – desta vez, envolvendo povos nativos isolados.

Esses povos são aqueles que não têm qualquer contato com os outros brasileiros. No mais das vezes, são sobreviventes de sucessivos massacres, que optaram por se isolar completamente dentro de seus territórios. O Brasil é o país onde mais há povos isolados. São, por ora, 28 povos oficialmente reconhecidos pela Funai, mas há pelo menos 116 sinais de existência de grupos dessa natureza em território brasileiro. Dentre os povos indígenas ameaçados, eles são os mais vulneráveis.

Até 1987, a Funai forçava o contato com povos indígenas isolados – medida que gerava resultados demográficos catastróficos. Os Panará, por exemplo, foram contatados em 1973 e tirados de suas terras para deixar passar a rodovia Cuiabá-Santarém. Eram de 600 a 800 indígenas em 1967.  Em 1975, dois anos depois do contato, restavam 75 indígenas vivos!

A partir de 1987, uma salutar mudança de política oficial determinou que povos indígenas voluntariamente isolados seriam deixados em paz; e suas áreas, interditadas a terceiros. Com essa mudança, o Brasil se tornou uma referência mundial na questão.

O Estado brasileiro republicano, ao que me consta, é laico. E, desde sua fundação, em 1910, sob a liderança do Marechal Rondon, o Serviço de Proteção aos Índios combateu (sem, todavia, sempre triunfar) qualquer interferência ou tutela de missionários. Aos missionários católicos sucederam-se missionários protestantes, entre os quais notadamente duas agremiações norte-americanas, o Summer Institute of Linguistics e a New Tribes Mission, já várias vezes expulsos de terras indígenas, mas sempre prontos a iniciar contatos.

Um exemplo recente foi a tentativa de intrusão ilegal de um missionário nos Hi-Merimã, um povo voluntariamente isolado do vale do rio Purus. Quando se instalam, os missionários evangélicos fornecem uma bem-vinda assistência de saúde (que seria responsabilidade do Estado), traduzem a Bíblia e demonizam as práticas tradicionais e seus especialistas, os xamãs.

A missão do CGIIRC é proteger esses povos contra a intrusão de madeireiros, garimpeiros, traficantes e quaisquer outros invasores, como missionários que não respeitem, como manda o artigo 231 da Constituição Federal, as terras, os recursos e o modo de vida dos povos indígenas. Colocar um missionário – ainda por cima experiente em tentativas de conversão de povos indígenas – à frente do CGIIRC só pode significar um mandato totalmente contraditório com o que manda a lei.

Desde a troca da sua presidência no governo atual, a Funai já exonerou vários indigenistas experientes e dedicados em funções essenciais, entre os quais coordenadores da CGRIIC. Nomear um missionário para o comando da CGIIRC é sinalizar um programa de assimilação dos povos isolados e recentemente contatados. Anuncia um retrocesso de mais de 30 anos e a volta dos contatos forçados que dizimaram tanto povos indígenas.

 

Manuela Carneiro da Cunha, da Comissão Arns, integra o conselho diretor da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da qual foi presidente.

 

Foto: Gleilson Miranda / Wikicommons

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.