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Comissão Arns

As mães do Fallet

Comissão Arns

07/02/2020 09h14

 

Laura Greenhalgh

Há um ano – precisamente em 8 de fevereiro de 2019 –, policiais militares surgiram nas comunidades Fallet, Fogueteiro e Prazeres, no Rio de Janeiro, para uma operação que totalizou 13 mortos. Invadiram uma casa no Morro do Fallet, abatendo ali mesmo 9 das 13 vítimas – oito homens negros e um adolescente, também negro, de 16 anos. Nenhum dos policiais saiu ferido da operação, embora afirmem que só abriram fogo porque os integrantes da casa, supostos traficantes, teriam disparado primeiro.

O que se seguiu à matança é prática conhecida no Brasil: vítimas foram transportadas já mortas para hospitais, em procedimento de "falsos socorros" que facilitam a desmontagem da cena do crime e a destruição de provas. Testemunhos de mães foram colhidos por uma Delegacia de Homicídios ao mesmo tempo em que elas reconheciam os cadáveres dos filhos, no Instituto Médico Legal. Necropsias foram finalizadas às pressas, gerando laudos de baixíssima qualidade – como atestaram peritos forenses internacionais convocados pela Human Rights Watch. Meses depois da chacina, o relatório do delegado justificou a ação policial, indicando ao Ministério Público (MP) o arquivamento do caso.

Às vésperas do seu lançamento, em fevereiro do ano passado, a Comissão Arns deparou-se com mais esta tragédia brasileira, no Morro do Fallet. Imediatamente passou a acompanhar o caso, que marca a estreia das políticas de segurança de "alto impacto" do governador Wilson Witzel. Foram feitas visitas ao MP e aos membros da Defensoria Pública do Rio de Janeiro – uma delas liderada pelo advogado Antônio Claudio Mariz de Oliveira, membro-fundador da Comissão Arns. A comissão também fez manifestações públicas, cobrando uma investigação que leve à responsabilização pelas mortes, ao suporte devido aos familiares das vítimas e ao esclarecimento esperado pela sociedade.

Visitas mais recentes aconteceram em janeiro de 2020, quando Comissão Arns pôde ouvir o testemunho de uma das "mães do Fallet" – que, por razões de segurança, deve ser mantida no anonimato neste post. A., esta mãe, trouxe o relato mais realista que se pode ter do pós-tragédia. Perdeu dois filhos na casa invadida. Soube que um morreu no local, outro sabe-se lá. Levavam uma vida normal, sendo que o mais velho havia se alistado no serviço militar. Eram tranquilos, estudavam, ajudavam nos afazeres domésticos. A. não sabe por que estariam no local invadido naquela noite, pois saíram de casa para participar de atividades esportivas na comunidade.

A. vive, desde então, uma espécie de dupla condenação: à dor pela morte brutal e não esclarecida dos filhos, e à vulnerabilidade por ser uma "mãe do Fallet". Programas de proteção não garantem a integridade física dessa mulher e dos filhos menores. Assistência psicológica, alguma, tem vindo de uma voluntária. Trabalho tornou-se raro: empregadores não querem uma funcionária que tenha vínculos com a tragédia. E, como se não bastasse, ameaças a essa mãe continuam a surgir em mensagens anônimas ou dissimuladas – cada toque de celular é um convite ao pânico.

José Carlos Dias, advogado, ex-ministro e presidente da Comissão Arns, ao se encontrar com membros do MP do Rio de Janeiro em reunião presidida pelo subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Criminais e Direitos Humanos, Ricardo Martins, em janeiro de 2020, manifestou novamente a preocupação que é de toda a comunidade de defensores dos direitos humanos e da própria sociedade: a de que essa investigação resulte em arquivamento do caso, sem a elucidação das mortes e a responsabilização de seus agentes.

A Comissão Arns ouviu dos procuradores que a investigação não se limita ao relatório policial. Foi apresentada à Comissão uma nova tecnologia para reconstituição de cenas, chamada "projeção reversa", que será usada pela primeira vez no Brasil em processo investigatório. Foi dito, ainda, que o Ministério Público do Rio de Janeiro não deseja que o Caso Fallet seja uma repetição do Caso Nova Brasília – chacina em comunidade do Complexo do Alemão nos anos 1990, com saldo de 26 execuções por policiais civis. Este caso levou o Brasil a ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por impunidade em relação à violência policial.

Uma investigação rigorosa é esperada agora. Não se pode aceitar a impunidade dos culpados, em detrimento da dor irreparável das mães do Fallet.

 

Laura Greenhalgh, jornalista, é integrante da Comissão Arns.

 

Foto: UOL – Pilar Olivares/Reuters

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.