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Declaração Universal dos DH: marco ético

Comissão Arns

17/03/2020 09h00

Fábio Konder Comparato

Não hesito em dizer que a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, fruto de uma evolução de pelo menos sete séculos, representou um marco histórico em matéria de ética.

Nas diferentes civilizações da antiguidade, cada povo considerava seus valores éticos, consolidados em costumes tradicionais, como superiores aos dos demais povos – os quais eram tidos, por isso mesmo, como bárbaros, senão como inimigos. Além disso, no mundo antigo, os indivíduos achavam-se absorvidos no grupo social, não tendo praticamente nenhuma autonomia de vida e atuação.

A Declaração Universal de 1948 veio alterar radicalmente essa concepção ética, ao proclamar, desde o seu artigo de abertura, que "todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos". Se todos nós, humanos, possuímos a mesma dignidade, nenhum povo, etnia, grupo religioso ou gênero sexual pode se considerar superior aos outros. Além disso, essa situação de substancial igualdade humana passou a concretizar-se em direitos; vale dizer, na capacidade reconhecida a cada qual – indivíduo ou grupo social – de exigir dos demais o respeito à sua dignidade.

Com isso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio anunciar a abertura de uma nova era na evolução histórica: a unificação da humanidade. Superando as divisões tribais, nacionais, étnicas ou religiosas, passamos todos a ter consciência de que formamos um só grupo na face da Terra, unido pela condição de natural solidariedade. Tudo o que prejudica um indivíduo, povo ou etnia prejudica também, necessariamente, a humanidade inteira.

Mas a História, obviamente, não cessa de evoluir. A partir de 1948, duas novas dimensões de direitos humanos surgiram, e passaram a ser objeto de documentos internacionais.

A primeira delas diz respeito ao chamado direito à diferença. Com efeito, se reconhecemos, de um lado, que a nossa espécie comporta dois sexos, cada qual com peculiaridades próprias e igualmente respeitáveis, e se, de outro lado, verificamos que possuímos, todos, capacidade de permanente criação cultural, é impossível negar que somos, pela nossa essência, diferentes uns dos outros. Em 27 de novembro de 1978, na Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, a Unesco, reiterando que nenhum povo pode considerar-se superior aos demais, afirmou que "todos os povos têm o direito de ser diferentes, de se considerarem diferentes e de serem vistos como tais".

A segunda dimensão dos direitos humanos, reconhecida posteriormente à Declaração Universal de 1948, é a existência de direitos dos povos e de direitos da humanidade. Dentre os primeiros, declarados, por exemplo, na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981, figuram o direito dos povos a uma existência livre e autônoma, bem como o direito ao desenvolvimento, à paz e à segurança.

Finalmente, quanto aos direitos da própria humanidade, devem ser lembrados, entre outros, o de preservação do meio ambiente mundial e o reconhecimento, como declarado pela Unesco em 1999, de que o genoma humano constitui um "patrimônio da humanidade", sendo, nessa condição, insuscetível de apropriação privada para fins empresariais, como se tentou obter, em inúmeras ocasiões.

Em suma, hoje, cada vez mais, tomamos consciência, pura e simplesmente, de que a preservação dos direitos humanos é uma condição sine qua non de sobrevivência da humanidade.

 

Fábio Konder Comparato é integrante da Comissão Arns, advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP.

Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.