A desinformação testa positivo
Por Laura Greenhalgh
Ao fatos: em março, Jair Bolsonaro e comitiva brasileira se encontram com o presidente Donald Trump, o vice-presidente Mike Pence, autoridades e convidados, num resort de luxo na Flórida. Voltam ao Brasil em avião oficial, com mais de duas dezenas de infectados pelo coronavírus a bordo. A Fox News divulga que o filho 03 do presidente teria dito que seu pai testara positivo. Eduardo Bolsonaro nega. Nas semanas seguintes, abre-se longa batalha midiática e jurídica sobre o acesso a uma informação que é devida à sociedade: o presidente contaminara-se ou não? Por fim, Bolsonaro libera exames médicos sob nomes falsos e comunica à nação que testou negativo.
Nesta terça (7/7), no mesmo dia em que seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro, prestou depoimento ao MP do Rio na investigação da "rachadinha", o presidente arma um circo midiático com a divulgação de outro teste para Covid-19, agora feito sob nome verdadeiro, com resultado positivo. Em entrevista a poucos veículos, depois reverberada por toda a imprensa, fala de sua recuperação e, como de praxe, distribui desinformações: além de comparar a pandemia a uma chuva, afirma que a maior parte das pessoas nem percebe que está com o vírus. Erra feio: a taxa dos assintomáticos no Brasil é de menos de 10%, portanto, a grande maioria dos que contraem a doença sabe muito bem do que se trata. Fora isso, assintomáticos são transmissores.
Na operação de mídia em torno do teste desta terça, Bolsonaro toma hidroxicloroquina numa live, desafiando estudos científicos e a não-recomendação da OMS ao medicamento. De novo, imita Trump: o presidente norte-americano, também diante de câmeras, já admitiu fazer uso da cloroquina de forma preventiva, o que não faz o menor sentido. Empossado como garoto-propaganda de medicamento, Bolsonaro deve ter combinado a live com setores militares, uma vez que a cloroquina 150 mg, registrada pelo Exército junto à Anvisa, está sendo fabricada pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFex).
Não é de hoje que o presidente prescreve aos brasileiros doses robustas de desinformação, inclusive sobre sua saúde. Os efeitos são mais do que evidentes: a falta de liderança como governante, negacionismo e exibicionismo explícitos e a pretensão de que pode manipular a opinião pública para o lado que lhe convier afundam o Brasil numa crise sanitária, com jeitão de humanitária. Estudo epidemiológico da Universidade Federal de Pelotas, encomendado por Luiz Henrique Mandetta quando à frente do Ministério da Saúde, permite afirmar que o número de contaminados no Brasil é pelo menos seis vezes maior do que o divulgado. Quanto à escalada de mortos pelo coronavírus, segundo o Institute of Health Metrics and Evaluation, dos Estados Unidos, poderemos ter mais de 166 mil no início de outubro próximo.
Parece evidente que não é hora de o presidente posar como garoto-propaganda de qualquer remédio, seja qual for o seu interesse nisso. Por outro lado, é urgente coordenar esforços para superar uma pandemia duríssima, que afeta desigualmente um país já tão desigual. Sejamos realistas: se exercer uma liderança verdadeira, legítima, democrática, em âmbito nacional, for algo muito acima das capacidades de Bolsonaro, que ele possa ao menos suspender a carga de desinformação que joga sobre os brasileiros a cada dia, produzindo enganos, estimulando comportamentos pouco ou nada solidários, colocando vidas em risco. Só que, para isso, será preciso compreender a dimensão do próprio cargo. Eis a questão.
Laura Greenhalgh, jornalista, é integrante da Comissão Arns
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