Racismo humilha e mata
Maria Victoria de Mesquita Benevides
Joilson de Jesus era um menino franzino, aparentava bem menos do que seus 15 anos, e morava numa favela na periferia paulistana com a mãe e três irmãos menores. As faxinas da mãe rendiam menos que um salário mínimo e cabia a seu primogênito ajudar, vendendo santinhos em torno da Sé. Num péssimo dia de dezembro de 1983, ainda sem ter conseguido um tostão, o garoto é envolvido em uma correria e, por um desses "erros" fatais, é perseguido como autor do furto de uma correntinha. Joilson não foi um "erro" – tinha a pele escura, "só podia ser o ladrão". Um senhor branco de terno o derruba e passa a pular em cima de suas costas raquíticas até matá-lo.
A autópsia revela insuficiência respiratória aguda, luxação traumática da coluna vertical por "provável" compressão do pescoço. Revela, também, que Joílson estava sem comer há três dias. E a tal correntinha, supostamente de ouro, nunca foi achada. Joílson, Negro.
A Comissão Justiça e Paz liderou as denúncias, houve um ato ecumênico na Catedral. E o assassino? Era um procurador do Estado que, depois de idas e vindas judiciais, sempre apoiado por seus pares, acaba inocentado pelo Tribunal de Justiça em 1987. Trinta e seis anos se passaram e lembro sempre de Joílson quando diante de fatos que repetem, numa normalidade trágica, as violências, humilhações e mortes de jovens negros e pobres, nesta rica cidade e em todo o país. Que angústia, nada parece ter mudado.
Margarida Genevois, presidente de honra de nossa Comissão Arns, diz, indignada, que não se conforma em ver as intensas manifestações dos americanos revoltados com o assassinato do negro George Floyd, enquanto aqui violência semelhante parece fazer parte da paisagem. Aqui, neste "país abençoado por Deus e bonito por natureza", as vidas negras NÃO importam. Dois casos recentes, pinçados pela imprensa, são eloquentes.
Rogerio Ferreira da Silva, dirigindo a moto de um amigo na zona Sul de São Paulo, é abordado pela PM, e, mesmo tendo obedecido, é atingido nas costas por um tiro à queima-roupa. O PM alegou legítima defesa – "pensou que o rapaz estivesse armado". Só que não. 'Eu implorei, não deixaram socorrer meu filho', diz mãe do rapaz, que já chegou morto ao hospital, no dia em que completava 19 anos. Rogério, Negro.
O entregador Matheus Fernandes, 18, foi agredido e ameaçado por dois seguranças armados em um shopping no Rio de Janeiro. Ele tinha ido trocar um relógio que havia comprado para o Dia dos Pais, quando os homens o acusaram de roubo. Apesar de protestos, foi jogado escada abaixo. Usava um boné do "incrível Hulk" e os PMs deduziram ser "coisa de traficante". Matheus, Negro.
E nós, pensando que já tínhamos visto tanta violência racista, ainda fomos brindados, em nosso horror, com a sentença de uma juíza do Paraná. Diante do caso de um suspeito sobre o qual não havia provas, ela escreve "seguramente integrante de grupo criminoso, em razão de sua raça". Que raça? Coincidência "normal", raça Negra. Diante das reações, ela se vitimiza, coitada: "Fui mal interpretada". Sem comentários.
Sabemos que o racismo é estrutural no Brasil, se alastra e corrói a sociedade, a economia, a cultura, a política, as igrejas. As relações entre pessoas e instituições. "Justifica" as desigualdades e as violências. O que me levou a evocar o caso do Joílson, de 1983, ao tratar hoje deste tema, sobre o qual tanto já foi escrito é o seguinte: naquela época houve apoio e proteção corporativa ao procurador assassino. Com o fim do regime militar, a Constituição de 1988 e os governos socialdemocratas (pelo menos até 2014), tivemos a ilusão de que a sociedade brasileira estava ficando mais "educada" no sentido civilizatório. E daí temos dificuldade de entender o apoio, inclusive das classes "letradas", ao bolsonarismo mais vulgar e cruel, a começar pelo racismo.
Realmente, Margarida tem toda razão: é muito triste termos que enxergar as características abjetas de uma sociedade herdeira de quase 400 anos de escravidão legal. Tais características ficaram, pelo menos explicitamente, um pouco adormecidas, mas a eleição do capitão abriu as portas do inferno. E saíram todos os preconceitos, as discriminações ofensivas, a exploração do trabalho, o apego aos privilégios, as violências de todo tipo contra os mais vulneráveis.
Aquele procurador assassino de 1983 continua entre nós. Vamos à luta!
P.S. Uma palavra de admiração, entusiasmo e carinho diante de nosso companheiro da Comissão Arns, José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, incansável lutador, que acaba de criar o Movimento AR. Viva! Estamos juntos!
Maria Victoria Benevides é integrante da Comissão Arns, socióloga, cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP
Foto: Wikimedia Commons
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