Os Avá-Guarani e as violações de Itaipu
Comissão Arns
07/11/2019 14h28
A procuradora-geral da República Raquel Dodge com representante dos Avá-Guarani
Por Julio José Araujo Junior e Manuela Carneiro da Cunha
O Ministério Público Federal (MPF) escreveu, na semana passada, um capítulo triste de sua história, ao desistir no Supremo Tribunal Federal (STF) da ação cível originária (ACO 3300) que pedia a responsabilidade do Estado brasileiro e a reparação pelos danos causados ao povo indígena Avá-Guarani, em razão da construção da usina de Itaipu. Ao deixar de cumprir o seu dever de defender os direitos dos povos indígenas, o MPF desconsiderou um trabalho de peso realizado pela própria instituição e deixou de honrar seu compromisso com esses grupos.
A apuração que levou ao ajuizamento da ACO 3300 envolveu diversos membros e servidores de várias instâncias do MPF e o permanente diálogo com os Avá-Guarani e seus parceiros. No âmbito da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar elegeu, em 2015, a apuração das violações ocorridas no Oeste do Paraná como uma prioridade. Esse grupo busca não apenas revelar os fatos ocorridos no passado como também assegurar a adoção de medidas de justiça de transição que permitam a reparação pelos danos causados durante a ditadura, a restituição de territórios e o estabelecimento de garantias de não repetição das violências praticadas.
No caso específico de Itaipu, o fato de ser uma empresa binacional gerou encaminhamento singular. Após tramitação na unidade do MPF em Foz do Iguaçu de denúncia contra as violações de direitos do povo Avá-Guarani causadas pela empresa, a investigação foi encaminhada ao procurador-geral da República, a quem cabe analisar casos que envolvam a empresa binacional. Em 2016, o então procurador-geral Rodrigo Janot designou um grupo que se encarregou de analisar os múltiplos aspectos do caso, no passado e no presente. O grupo foi mantido pela procuradora-geral Raquel Dodge, que viria, em setembro de 2019, a propor a ação.
O trabalho do grupo, de caráter interdisciplinar, valeu-se de pesquisa documental e bibliográfica e produziu dois relatórios sobre diligências no oeste do Paraná. O primeiro faz uma abordagem antropológica e histórica do tema; o segundo analisa os danos e as consequências jurídicas e formas de reparação. Os dois relatórios foram reunidos em na publicação Avá-guarani: a construção de Itaipu e os direitos territoriais, elaborada pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU).
A publicação foi entregue à PGR em abril deste ano, em cerimônia que contou com a presença dos Avá-Guarani. Desde então, os indígenas, que estão sob ameaça de expulsão das áreas em que vivem atualmente, aguardavam o desfecho da atuação do MPF enquanto acompanhavam com apreensão a tramitação de pedidos de suspensão de reintegração de posse que tramitam no Supremo Tribunal Federal. Pressionados pela empresa a deixar áreas já diminutas em que sobrevivem com muitas dificuldades, os indígenas viam na ação a oportunidade de trazer a sua versão da história e a importância do respeito à territorialidade Guarani, em contraponto às versões oficiais de que não havia presença indígena na área.
Finalmente, em setembro deste ano, a tão esperada ação foi proposta, em 74 páginas que descrevem a violação de direitos socioculturais e territoriais dos Avá-Guarani. Esse povo passou por muitos outros episódios de violência no período colonial, no século XIX com a exploração semi-escravista da mão de obra e nos anos 1930/1940 com as remoções decorrentes da criação do Parque Nacional do Iguaçu. A ação ACO 3300 ressalta, porém, que a gravidade das violações causadas por Itaipu deve-se à "transformação definitiva" que causou à paisagem, aos espaços e aos recursos da região. Os alagamentos produzidos pela construção da usina deixaram áreas submersas e definitivamente inacessíveis. Além disso, a peça mostra que Itaipu está ligada à produção de uma invisibilidade da presença indígena na região: laudos e documentos negavam constantemente a condição indígena dos integrantes da etnia.
A petição inicial apresenta diversos pedidos, sendo que o de natureza indenizatória é apenas um. Diversas medidas de reparação foram requeridas, com ênfase no reconhecimento e demarcação do território do povo Avá-Guarani, na apresentação de pedido público de desculpas e na inclusão no currículo escolar da trajetória de violações causadas por Itaipu. Além disso, pleiteia-se o pagamento de indenização por dano moral coletivo (R$ 50 mi) e pagamento de compensação financeira anual sob modelo análogo ao de royalties, em valor não inferior a R$ 100 mi.
A ação foi recebida com esperança pelos indígenas, que realizaram em 5 de outubro um evento para celebrar o 31º aniversário da Constituição de 1988 e parabenizar o MPF pela proposta. Sentiam-se fortalecidos para continuar na luta pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e desejavam ingressar no processo para apresentar a sua versão dos fatos e acrescentar histórias que não haviam sido colocadas na petição inicial.
A entrada dos indígenas no processo, porém, não foi possível. O ministro relator, Alexandre de Moraes, intimou a PGR a manifestar-se acerca de uma questão meramente formal: por tratar-se de processo eletrônico, era necessário organizar os arquivos que acompanham a ACO 3300, dividindo-os em várias partes. Ao receber os autos, o atual PGR decidiu desistir do processo, sob o argumento de que seria necessário realizar mais estudos; que as questões fáticas e jurídicas eram dotadas de elevada complexidade; e que não havia definição clara da quantidade de aldeias atingidas.
Tal cenário pode conduzir ao risco de inefetividade de um eventual juízo de procedência dos pedidos, em especial se consideradas as dificuldades para a fiel identificação dos sujeitos beneficiários, o que é reforçado pelo fato de a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada no Brasil pelo Decreto 5.051/2004, abraçar o critério da autodeclaração e consciência da identidade indígena.
Um trabalho que levou anos para ser concluído e envolveu diversos atores institucionais foi desacreditado em três parágrafos, sem qualquer consideração mais aprofundada sobre as diversas questões complexas e importantes tratadas na ação. Ao contrário, a peça de desistência limita-se a mencionar a dúvida sobre a quantidade de aldeias atingidas, como se essa questão também não fosse mais uma prova de que a omissão do Estado na caracterização da área e das comunidades a serem impactadas não fosse mais um fator a ensejar responsabilização.
A tese da ação e a existência de danos sequer chegam a ser enfrentadas, o que já demonstra a plena viabilidade do processo e a gravidade dos fatos. Houve um apego a um aspecto quantitativo como se faltasse precisão à peça. Note-se, no entanto, que o tema das grandes violações de direitos humanos exige justamente consideração crítica sobre as medidas que o Estado adota – ou deixa de adotar – para que sejam efetivamente apuradas.
Nesse sentido, a falta de transparência e a não adoção de medidas tendentes a revelar atrocidades massivas do passado fazem parte do processo de violações produzidas pelo Estado, uma vez que tais omissões tornam "complexas" e "confusas" as tarefas de busca da responsabilização. Assim, aludir a uma dúvida quanto a aspectos quantitativos contribui para que os fatos continuem sendo silenciados, a despeito da existência de uma farta documentação e da voz das vítimas que apresentam depoimentos consistentes acerca de sua ocorrência. A propósito, os indígenas têm, sim, a sua versão do quantitativo de aldeias submersas, o que consta claramente do trabalho. De qualquer forma, da maneira como foram abordados, tais aspectos específicos não deveriam gerar o pedido de extinção não fundamentado do processo, mas, no máximo, ensejar a discussão na produção de provas do processo.
Embora tenha desistido de uma ação de caráter coletivo, no qual a indisponibilidade do direito deve ser reconhecida, o STF homologou rapidamente o pedido. Os indígenas chegaram a pedir o ingresso no processo, mas o pedido sequer foi apreciado. Como nos tempos da construção de Itaipu, instituições que deveriam estar ao lado desses povos continuaram a promover sua invisibilidade O sistema de justiça suprimiu, desta vez por meio da instituição máxima do Poder Judiciário e do Procurador-Geral da República, a possibilidade de discussão a respeito da história dos povos indígenas. A mensagem que a desistência passa é a de que a concretização de direitos fundamentais indígenas é matéria que pode ser adiada, sobretudo quando afrontar interesses poderosos.
Apesar da decepção, nada impede que a demanda seja proposta novamente. Espera-se que os indígenas e outros órgãos legitimados possam garantir que toda a apuração sobre a construção de Itaipu e as violações dos direitos territoriais do povo Avá-Guarani mereçam a devida apreciação o mais breve possível. Deseja-se, também, que o STF não se furte ao dever de garantir a posse dos territórios em processos de suspensão de reintegração de posse, de modo a não repetir os erros cometidos na ACO 3300.
Julio José Araujo Junior é procurador da República no Estado do Rio de Janeiro.
Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia.
Membros da comissão
Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)
História da comissão
A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.