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Davi Kopenawa fala na ONU sobre os povos indígenas no Brasil

Comissão Arns

03/03/2020 08h37

 

O líder Yanomami Davi Kopenawa falou, ontem, 2 de março, na plenária de abertura da 43ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. Ao lado da Comissão Arns, do Instituto Socioambiental e da Conectas, ele participa do evento com o intuito de levar ao órgão internacional denúncias sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, sob risco de etnocídio, e dos povos isolados, que estão sob risco de genocídio.

A Comissão Arns veicula, neste seu privilegiado espaço de mídia, um testemunho de Davi Kopenawa sobre a invasão do território de seu povo. Esse documento está sendo distribuído hoje aos participantes do encontro na ONU.

 

Testemunho de Davi Kopenawa sobre a invasão do território Yanomami pelos garimpeiros e a situação dos grupos isolados ()

As coisas estão assim. Agora os Brancos não vivem longe de nós. Eles não param de se aproximar. Na cidade de Boa Vista, eles se tornaram muito numerosos, vão aumentar sem trégua, e agora eles se exortam uns aos outros. Eles dizem: "Sim, vamos nos apoderar dos bens preciosos da terra dos Yanomami. Esses bens ainda não são mercadorias de verdade, mas são bens preciosos, escondidos no cascalho da terra. Nós vamos tomar essas riquezas, e ainda as árvores da floresta e vamos nos instalar nos Yanomami!". É o que os Brancos dizem uns aos outros e é como eles se encorajam:  "Venham para Boa Vista! Eu, governo de Roraima, vou lhes dar trabalho! Vocês não serão mais pobres!".

Estas são as palavras deles. Com elas querem trocar seu dinheiro e suas mercadorias. Assim os Brancos, todos eles, não param de fixar seu olhar sobre a nossa floresta para tentar se apoderar dela. Eles dizem: "Sim, nós vamos arrancar dinheiro da floresta. Os Yanomami não sabem de nada, portanto, são nossas as riquezas". É isso o que os Brancos falam ao encorajar seus trabalhadores a virem para a floresta. "Sim, podem ir! Não tenham medo! Os Yanomami parecem numerosos, mas nós é que somos, de verdade! Mesmo que eles flechem alguns de nós, ainda assim seremos ainda muito numerosos!".

Dizendo essas coisas todas é que eles aumentaram tanto e por toda a parte, na floresta, nos rios, nas terras altas. Eles querem o ouro. O valor do ouro aumentou cada vez mais e eles aumentam sem cessar. Eles pensaram: "Sim, agora o valor do ouro está muito alto. Vamos todos para a terra Yanomami!". É assim que eles adentraram a floresta por todos os lados, através dos rios, pelas trilhas, com seus aviões e helicópteros. É assim que as coisas estão hoje em dia. Eles abriram portas de entrada pelos rios e pelo ar. Eles desmataram para fazer pistas de aterrissagem por toda a parte. Também desmataram para fazer novas trilhas na floresta. Na bacia do Rio Apiaú, é por aí que eles chegam em grande número. Pelo rio Parimiú, também. Eles já foram expulsos de lá, mas voltaram ainda mais numerosos! Há também uma outra trilha, que sobe ao longo do Rio Catrimani.

Pela trilha do Rio Apiaú, eles se aproximaram do lugar onde vive o grupo isolado Moxihatetea. Nas nascentes do Rio Apiaú, onde vivem esses povos isolados, começaram a atacar e a destruir a floresta e seus rios. No início, eles trabalhavam com as mãos, mas agora usam máquinas. Descem as peças dessas máquinas de um helicóptero para, depois, montá-las ali mesmo. É assim. Os Moxihatetea estão vigilantes e desejam ficar longe dos Brancos. Eles não conhecem garimpeiros e não querem que se aproximem. Então, já fugiram muitas vezes. Mas, agora, não podem mais fugir. Antes eles se refugiavam na floresta profunda, longe das trilhas, e lá ficavam em acampamentos provisórios, como quando estavam em expedições de caça, longe de casa. Os garimpeiros então começaram a roubar a comida dos roçados – a mandioca, as bananas, as canas de açúcar, quando as suas provisões de arroz, farinha e latas de conservas se esgotaram.  Os guerreiros Moxihatetea os atacaram com flechas, mas os garimpeiros, mais violentos, quiseram se vingar atirando com espingardas. É o que aconteceu com os Moxihatetea isolados, e eu acho isso muito errado.

Daí eles fugiram de novo subindo o rio, mas nessa direção também há garimpeiros instalados no Rio Catrimani, criando obstáculo. Os índios agora estão cercados. Por isso estou falando para defender os Moxihatetea. Mas eu não conheço as suas casas, assim como vocês também não conhecem. Eu só as vi do céu, do avião. Nunca os visitei a pé. Nunca nos falamos. É por isso que estou muito preocupado. Talvez em breve estarão exterminados. É o que eu acho. Os garimpeiros, sem dúvida, vão matá-los com suas espingardas e suas doenças, a sua malária, a sua pneumonia… Os indígenas não têm vacinas de proteção, vão todos desaparecer.

E não há só eles na terra-floresta Yanomami. Mais além, na região de Erico, vivem outros povos isolados. São como os Moxihatetea. E também, na outra margem do Rio Catrimani, a jusante, nas cabeceiras do Rio Xeriuini, há outros isolados. E ainda num afluente do Rio Arca, no centro. É por isso que lutamos por eles. Estamos muito inquietos pelo que possa lhes acontecer. Há outros isolados na floresta próxima dos Waimiri-Atroari e há outros em toda a Amazônia! Viviam assim há muito tempo e querem continuar assim! São eles que cuidam verdadeiramente da floresta. São os Moxihatetea e todos os povos isolados da Amazônia que ainda guardam a última floresta. Mas os Brancos não sabem disso, porque eles não compreendem a língua desses povos. Os brancos apenas pensam: "O que eles estão fazendo aqui?". E quando os Brancos chegam, são suas epidemias que chegam também com eles.

É por isso que eu reflito: "O que acham os Grandes Homens [autoridades] dos brancos? Não querem nos deixar viver em paz e em boa saúde? Eles nos detestam, de verdade?". É evidente que nos consideram como inimigos, porque somos outras gentes, somos habitantes da floresta. Fomos criados na floresta da Amazônia, no Brasil, e por isso os Brancos não nos conhecem. Eles se contentam em atacar e destruir à vontade nossa floresta. Não é a terra deles, mas eles declararam que lhes pertence. Eles pensam: "Essa floresta é nossa. Vamos arrancar o ouro do solo, cortar as suas árvores, vamos instalar aqui outros brancos que necessitam de terra, os criadores de gado, os colonos, e vamos então acabar com os Yanomami". Não é só o que eles pensam, agora é até o que eles dizem mesmo!

O novo presidente do Brasil, eu nem menciono o seu nome, nem digo para ele: "Como você é o presidente, você deveria nos proteger!". Eu já conheço as palavras desse presidente: "Que venham todos os Brancos que queiram dinheiro, os criadores de gado, os madeireiros, os garimpeiros e os colonos também. Eu vou lhes dar essa floresta, para acabar com todos os Yanomami, todos eles, e para que os Brancos se tornem os proprietários. É nossa terra e tudo bem! Assim é, eu sou o único senhor dessa terra!".  Essas são as suas palavras. Essas são as palavras daquele que se faz de grande homem no Brasil e se diz Presidente da República. É o que ele verdadeiramente diz: "Eu sou o dono dessa floresta, desses rios, desse subsolo, dos minérios, do ouro e das pedras preciosas! Tudo isso me pertence, então, vão lá buscar tudo e trazer para a cidade. Faremos tudo virar mercadoria!".

É o que os Brancos acham e é com essas palavras que destroem a floresta, desde sempre. Mas, hoje, eles estão acabando com o pouco que resta. Eles já destruíram as nossas trilhas, sujaram os nossos rios, envenenaram os peixes, queimaram as árvores e os animais que caçamos. Eles nos matam também com as suas epidemias. Alguns Brancos têm pena de nós, mas não os seus Grandes Homens que dizem que nós somos animais. Eles dizem: "São macacos, porcos do mato!". No entanto, são esses homens que não sabem pensar. Eles não sabem trabalhar na floresta, não conhecem seu poder de fertilidade në rope. Só ficam andando de um lado para o outro, destruindo. Eles só querem conhecer a floresta do alto de suas máquinas satélites, que saem das cidades e que olham de relance as árvores, as nossas casas, os rios, as colinas, a beleza da floresta. Depois disso eles chamam os outros: "Sim, venham pra cá. Nós todos do Brasil vamos tirar os bens preciosos! Nós vamos acumular tudo isso nas cidades! Nós vamos, de verdade, virar o Povo da Mercadoria! Não seremos mais pobres, vamos ter muitos bens!". É o que eles dizem entre eles. Era isso que eu queria contar aqui. Essa gente é indiferente às palavras daqueles que defendem os Yanomami. Mesmo assim, envio essa mensagem.

Gostaria que os Direitos Humanos da ONU pudessem olhar para nós e nos dar um apoio muito forte para que as autoridades do Brasil – os políticos dos municípios, dos estados e da capital – todos esses Brancos das cidades, nos respeitem e não nos molestem mais. Que eles compreendam e reconheçam os direitos dos seres humanos, assim como faz a ONU. Os Direitos Humanos da ONU são construídos para defender os que sofrem. Então, eu gostaria que a ONU fizesse um bom trabalho, denunciando com muita força o que nos acontece, para que as autoridades do Brasil respeitem os Yanomami, os povos isolados e todos os povos ainda não reconhecidos.

Meu povo tem o direito de viver em paz e em boa saúde, porque ele vive em sua própria casa. Na floresta estamos em casa! Os Brancos não podem destruir nossa casa, senão, tudo isso não vai terminar bem para o mundo. Cuidamos da floresta para todos, não só para os Yanomami e os povos isolados. Trabalhamos com os nossos xamãs, que conhecem bem essas coisas, que possuem uma sabedoria que vem do contato com a terra. A ONU precisa falar com as autoridades do Brasil para retirar – imediatamente – os garimpeiros que cercam os isolados e todos os outros em nossa floresta.

 

*Tradução do Yanomami para o francês por Bruce Albert, antropólogo. Do francês para o português, por Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, com Laura Greenhalgh, jornalista.

 

 

 

 

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Membros da comissão

Ailton Krenak (líder indígena e ambientalista), André Singer (cientista político e jornalista), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (advogado, ex-presidente da OAB-SP), Belisário dos Santos Jr. (advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas), Cláudia Costin (professora universitária, ex-ministra da Administração), Dalmo de Abreu Dallari (advogado, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP), Fábio Konder Comparato (advogado, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, professor emérito da Faculdade de Direito da USP), José Carlos Dias (presidente da Comissão Arns, advogado, ex-ministro da Justiça), José Gregori (advogado, ex-ministro da Justiça), José Vicente (reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares), Laura Greenhalgh (jornalista), Luiz Carlos Bresser-Pereira (economista, ex-ministro da Fazenda, da Administração e da Reforma do Estado), Luiz Felipe de Alencastro (historiador, professor da Escola de Economia da FGV/SP e professor emérito da Sorbonne Université), Manuela Carneiro da Cunha (antropóloga, professora titular aposentada da USP e da Universidade de Chicago), Margarida Bulhões Pedreira Genevois (presidente de honra da Comissão Arns, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo), Maria Hermínia Tavares de Almeida (cientista política, professora titular da Universidade de São Paulo), Maria Victoria Benevides (socióloga e cientista política, professora titular da Faculdade de Educação da USP), Oscar Vilhena Vieira (jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP), Paulo Vannuchi (jornalista, cientista político, ex-ministro de Direitos Humanos), Paulo Sérgio Pinheiro (cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), Sueli Carneiro (filósofa, feminista, ativista antirracista e diretora do Gelidés), Vladimir Safatle (filósofo, professor do Departamento de Filosofia da USP)

História da comissão

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ¨Dom Paulo Evaristo Arns¨ foi instalada em 20 de fevereiro de 2019, em ato público na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco (SP). Ela reúne, como membros-fundadores, 20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais de distintas gerações, cujo denominador comum tem sido a permanente defesa dos direitos humanos em suas áreas de atuação. O grupo se organizou de forma espontânea, voluntária e suprapartidária, para dar visibilidade a graves violações da integridade física, liberdade e dignidade humana em nosso país. Tem como prioridade os indivíduos e as populações discriminadas - mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQs, jovens, moradores de comunidades urbanas e rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns age sentido de impedir retrocessos em marcos legais e direitos sociais conquistados pelo povo brasileiro.