Prisões: o espaço do não-estado de direito
Paulo Sérgio Pinheiro
Se há uma área em que a construção da democracia no Brasil falhou, nos últimos trinta anos, foram as prisões. Para a maioria dos presos comuns, há pouca diferença em relação ao tratamento que recebiam os presos durante os 21 anos de ditadura. As prisões no Brasil continuam a ser o espaço privilegiado do não-estado de direito.
É claro que, no final da ditadura, nos primeiros governos eleitos diretamente nos estados, a bandeira da humanização das prisões prevaleceu, provavelmente pelas situações que foram reveladas pelos presos políticos. No "Mutirão contra a Violência", redigido por Fernando Gabeira, a convite do presidente José Sarney, inspirado por uma proposta da Comissão Teotônio Vilela ao candidato Tancredo Neves, havia uma nova política carcerária.
Relembro as medidas corajosas – que hoje podemos caracterizar como revolucionárias – propostas por José Carlos Dias, então secretário de Justiça no governo Franco Montoro. Entre essas, o enfretamento da tortura, a criação das comissões de solidariedade eleitas por presos e as visitas íntimas. A TV Cultura organizou um debate sobre essas reformas, entre uma comissão de presos e especialistas em questões carcerárias e jornalistas, impensável nos dias atuais.
Os governos democráticos que se seguiram, no âmbito federal e estadual, não debelaram o superencarceramento, especialmente depois da década de 1990. No poder judiciário, houve um delirante endurecimento das penas, como se esse fosse adequado ao enfrentamento do crime, o que se revelou um logro.
Encaremos a brutal realidade do tempo presente. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registram, agora, 812 mil presos nos regimes fechado, semiaberto e os que cumprem pena em abrigos. Temos a terceira população carcerária no mundo, logo abaixo dos Estados Unidos e da China. Agravando mais a situação, 337.126 são presos provisórios — quer dizer, sem condenação, sequestrados pelo Estado. Tudo marcado pela superpopulação, presos amontoados como gado, em cerca de 423.242 mil vagas.
A maior parte dos presos é composta de jovens de baixa escolaridade, entre 18 e 29 anos, correspondendo a 55% dos reclusos; 64 % são negros (pretos e pardos, segundo o Censo), o que representa quase dois terços dos presos. Entre os presos 34 mil são mulheres, 68% negras. O sociólogo Sergio Adorno, em uma pesquisa inovadora, havia demonstrado, faz mais de vinte anos[1], que nos processos em São Paulo, negros recebem penas mais pesadas que brancos em crimes idênticos. Como afirma a socióloga Dina Alves, "o cárcere é a maior expressão do racismo" no Brasil.
O funcionamento dos estabelecimentos carcerários no Brasil viola flagrantemente os direitos fundamentais dos presos e presas, se constituindo em um "estado de coisas inconstitucional", quer dizer, de total desrespeito à constitucionalidade democrática. Apesar disso, como reconheceu o STF, essa situação continua e se reproduz graças à inércia ou à incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar esse desrespeito ao estado de direito.
Paulo Sérgio Pinheiro é presidente da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos.
[1] Adorno, Sérgio. "Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa", Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.
Foto: Radioagência Nacional
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